Enquanto lia as duas colunas finais da vida simples,
uma sobre coleções e outra sobre as coisas que nos acompanham nas andanças da vida, lançaram-se ao fogo do meu córtex visual, lembranças boas de um tênis de pano azul bebê com ilhós coloridos que ainda figura em fotos da infância, da estante bagunçada de brinquedos que mal lembro de ter manipulado, daquele anjinho rezando, de gesso, presente de uma freira do jardim de infância que minha irmã quebrou em algum momento que me despertou fúria mortal, dos meus incompreendidos e também invejados all stars coloridos por mim e esfolados à exaustão dos meus passos(de uma época em que só existiam pretos, brancos, vermelhos e azuis escuro e eu me valia de tinta de tecido pra pisar do meu jeito) e dos além objetos e tempo, àqueles bons encontros, boas risadas, bons momentos compartilhados com quem dividia interesses em comum de cada época.
Enquanto lia me dei conta de uma nova maneira de encarar o acúmulo.
De fato sempre fui de tranqueiras. Mas houve um tempo em que minha mãe ditava as regras e eu, dono apenas de pequenos e secretos fundos de gavetas bagunçadas, só podia guardar o que conseguisse esconder de suas mãos. Claro, até a próxima mudança.
Hoje em dia ainda sou essa criança que guarda, sem a ação da mãe que joga tudo fora (ou nem tanto. a cada visita nascem mil reclamações sobre minha bagunça, meu mafuá)!!
Ela diz que puxei ao meu pai, que tem uma coleção invejável de coisas e poeiras sobre elas. Todas à espera de mais tempo livre para serem revisitadas. São gavetas e cômodos inteiros que tomariam dias ou semanas de busca para que se tomasse conhecimento de todo seu conteúdo.
Bom, tive a quem puxar, né? E agora sou eu e mais uma tonelada de coisas que não param de receber companhias.
Revistas que me encantaram as retinas ou as ideias
Papéis com rabiscos, com tintas, com imagens ou com qq formato e dobra que me interesse.
Textos do colégio, da faculdade, e sabe-se lá mais de onde que marcam a geografia e a história do meu eu aluno acadêmico.
Fotos das mais variadas. Das que pesam gramas às que pesam bytes. Dos mais diversos fotógrafos. O pai zeloso, a avó coruja, a mãe babona, o adolescente curioso, narciso, curioso de novo, um chato colecionando flashes, um cientista congelando segundos, um interesseiro eternizando rostos, belezas e memórias, um explorador captando esquinas, pessoas e verdes de locais cuja lembrança falha às vezes. Mtas vezes.
Livros que nunca li, que já li e que nem sei pq tenho. Histórias que esqueci, que me assustam pelo número de páginas q percorri, que deixaram marcas, que mudaram mto, que emocionaram, que eu rabisquei de cima à cima da outra página.
Roupas pra vestir um exército de eus. Daqueles que travam batalhas com os dias, as festas o social e o anti-socialismo.
Anotações, caderninhos, adolescentes agendas, ingênuas passagens, letras feias, garranchos e letras bonitas, desenhadas com um leve pulsar nas mãos, outras mais apressadas que fim de aula de sexta, ou preguiçosas como receita de médico.
Eu gosto de ter história pra contar, gosto de linkar o tempo, lembrar que ele passou, ou melhor, que eu passei por ele. Gosto de cultivar esse museu egocêntrico, essa linha descabelada da minha vida.
Gosto disso, de sentir que houve uma vida ali, poucos dias ou anos atrás. E daqui há uns dias ou anos certamente vou sorrir por ver que essa vida continuou mais um pouco e vou precisar desse acúmulo pra ter certeza disso, de coisas, de registros e de pessoas.
Pareço um condenado falando(e não somos todos? Condenados ao tempo, presos em partículas de 12 meses, 4 semanas, 7 dias, algumas horas...), mas a sensação é mais mista que isso. É um descontrole de ideias que me levam a pensar que desse tudo por onde passo, um pouco tem que ficar, pra que depois eu me lembre. Me lembre que um dia eu estive aqui e no talvez hoje não estou mais. Um forjar de memórias, à ferro ou mais fácil que isso. Um apego, talvez ao tempo, ao acontecimento, ao mundano, ao amigo, às companhias. Mais um grão pra uma coleção que, sempre parece coisa de louco, mais será de grande serventia, quando esse inevitável futuro chegar. Seja ele doença, seja ele fraqueza, seja ele um simples e doce envelhecimento.
De uma ótica juvenil desastrosa, enxergo essa necessidade de apegos terrenos pra que as ideias flutuem sem rumo e sejam resgatadas ao contato com cada parte visual/concreta que eu um dia pude manter arquivada nessa bagunça sem fim.
Talvez a sensação seja anterior ao pensamento(isso parece uma daquelas dúvidas imbecis que todo mundo devia ter certeza, né?).
E a verdade já existia antes dessas palavras.
Ou a verdade não parece tão clara, assim como o texto.
Confesso que tô encontrando uma dificuldade imensa de conexão ao escrever esse texto. (P.S.: mais de quatro parágrafos foram cortados e os que restaram acima dessa linha foram relidos e reorganizados umas 5 ou 6 vezes, o que é mto doloroso e confuso pra quem tem mania de escrever em torrente de palavras)
Não sei alinhar palavras suficientes pra sustentar algo que nem sei o que é. (P.S-2.: será que consegui um pouco, abaixo?)
Sei o que senti.
Sei que o que passei me parece passado agora. Os últimos tempos estão mudando. A ótica tá em plena transformação (sempre, eu sei!). Mas essa transformação me parece um pouco mais palpável agora. É como seu eu pudesse ver meus dias sentado numa plateia de cinema. Tenho me permitido esse afastamento assustador, esse julgamento de terceira pessoa.
Essa sensação sem explicação me tirou de uma poltrona com a revista na mão e os pensamentos e lembranças na cabeça, me levou ao espelho e me fez ver… que cabelo cresce.
Que não importa o que se passe hoje, ou ontem ou a sensação que destrua ou levante, não importa os gritos, a tomada de decisões, a verdade do tempo é essa. Non-stopping como a do cabelo.
O problema é quando assim como o tempo, perdemos a noção de crescimento do nosso próprio cabelo. Perdemos a estação do trem, o caminho de casa a conexão com o espelho, a visão ou sensação da nossa própria vida, desencontramos das saudades, esquecemos quem fomos, quem somos, o que vivemos, do fomos capazes do que SOMOS CAPAZES. E é aí que a coisa desanda. É aí que se abre espaço pr`um eu que nem me pertence. Pr`uma sensação fora de registro, pra ideias plantadas sabe-se lá por que aresta do seu cérebro, ou do meu.
E nesse perder de vista, é nesse desencontro com o seu acaso, com o seu eu, com as suas crenças em vc mesmo, com o seu tempo/espaço de reflexão, com a sua imagem no espelho que a gravidade pesa mais, que a memória enfraquece, que as pessoas parecem desinteressantes e descartáveis, que os projetos parecem perfeitos pro ralo, que a cor desatura.
De fato ainda não recuperei a saturação de antes, o amor que tinha. E se era vidro, quicou no chão, mas quebrado ainda não tá, talvez só um pouco avariado. Ou quem sabe quebrou sim e agora é hora de colar em uma nova configuração, não por obrigação de inovar, mas pela diversão de remontar o velho como novo, desconhecido e carente de novas descobertas. Ainda que isso tudo seja feito pelo mesmo desanimado de ontem, que há poucos dias não se reconhecia no espelho, mas se entregando ao pequeno prazer de cortar seu próprio cabelo, hoje não se reconheceu de uma maneira boa. E encontrou outra pessoa, diferente da semana passada e igual a imagem de meses e anos atrás. O mesmo corte, o mesmo sorriso e a mesma carinha de adolescente que ainda tem um mundão pra descobrir, um montão de planos pra fazer, uma vida pra viver e um passado pra começar a ser colecionado AGORA! =)
E a sensação foi boa, o cabelo tá lindo e os pequenos prazeres voltando aos poucos, como um velho teatro a ser iluminado lâmpada por lâmpada, como uma velha fábrica sendo ligada disjuntor a disjuntor!
Pois é, ainda bem que cabelo cresce e eu posso cortá-lo quando quiser!