capítulo 1
Pensei: as always!
Ela escorria gelada, do centro até a orelha esquerda, passando por trás e arrepiando até o último fio de cabelo!
Uma gota caiu da marquise cinza, enquanto a garoa flutuava sobre a cidade!
Duas meninas lindas passaram por mim com um guarda-chuva azul royal, também lindo! Bordas brancas e haste preta! o cabo tinha um animal qualquer, difícil de reconhecer quando de ponta-a-cabeça! lembro de pensar que com os minúsculos flocos de chuva, abrir o meu ainda seria desnecessário! estariam de escova recente, talvez?
Saí com pressa e irritado com a velha plastificada. sorri pensando que ela poderia estar depositando dinheiro pro filho que mora longe! ou pr'alguma vítima de desastre! quem sabe até pagando um agiota! ou ainda, apenas pagando seu aluguel! velhas embotocadas também pagam aluguel, certo?
Não adiantou! ela continuou plácida sua operação bancária. estremeci, mas me calei!
ela não ouviu! enfurecido, apenas repeti com educação! – apenas este me serve!
eu disse: a sra vai usar de novo? Porque esse é o único caixa com dinheiro trocado!
Dei um boa noite rouco e ousei interferir em sua ação! ela pegou suas notas, seu telefone e não saiu da frente da porra do caixa!
Sairam apenas notas de 100! I-na-cre-di-tá-vel que a única pessoa, além de mim naquele banco, estava usando o único caixa com trocados para sacar o que todos os outros tinham! NOTAS DE 100!
A sra. que estava em outro caixa reclamou da falta de dinheiro, e murmurando qualquer outra coisa se dirigiu ao meu único destino naquele lugar!
Passeei de uma ponta a outra e verifiquei que quase todos os caixas só tinham notas de 100 e apenas um tinha notas de 2/20/50 e também de 100!
Entrei apressado e feliz pq haviam muitos caixas disponíveis!
Andava tranquilo, rua escura, vazia e molhada! Olhei no relógio. Eram 21:40. O banco ainda estaria aberto!
Saí de casa ainda na dúvida se não seria melhor ficar e dormir um pouco mais essa noite. Afinal, andava muito cansado.
Comi 3 água e sal com cotage e blanquet. Bebi água, vesti o tênis e peguei meu guarda-chuva já no escuro, porta aberta e corredor sem luz!
capítulo 2
Não! comecei tudo errado!
Eram 3 da manhã. Meu pulmão ardia! Luzes piscavam e eu não sentia mais nada!
Me assustei e tentei correr abaixado! Pernas se desvelavam no meio da fumaça! Bati a cabeça na quina de uma mesa, derrubei um banco e segui caçando o Júlio e a Laura!
Um clarão, muito calor, gritaria e confusão!
Peguei meu último drink da noite! Tenho o hábito de comprar apenas 4 fichas. Queria economizar, mas sempre batia um arrependimento quando usava a última ficha!
Voltei do banheiro e fui ao encontro de Júlio! Laura estava com Luiz num amasso de dar inveja.
Tocava nossa música. Júlio um pouco tímido tinha receio de me beijar naquela boate. Medo de apanhar, medo das opiniões alheias. Medo do rapaz do trabalho que havia encontrado na fila.
A fila andava devagar. Como sempre, esperavam dar meia noite para encurtar o tempo da lista amiga.
Entramos tarde e de tanta cerveja consumida na calçada, fui direto ao banheiro.
Peguei o Júlio na portaria, o taxista, já habitual, sabia o caminho. Laura encontraria conosco no bar da esquina.
Liguei pra Laura e pro Júlio. Tudo combinado. Estava cansado, mas não tinha volta. Já havia tirado o dinheiro do taxi e da entrada. Pro consumo da noite usaria o débito.
Perguntei sobre sua família ainda fora do carro. A filha ia bem. Disse-me enquanto fechava a porta que aquela seria sua última corrida do dia. Dona Maria lhe esperava pro jantar. Comentei com simpatia, que ele estava apenas me esperando. Sorte a minha.
Ainda arrepiado daquela maldita gota gelada que me fazia ter plena consciência de cada centímetro da minha cabeça, avistei o ponto de táxi. O carro do seu Agenor parecia ser o primeiro.
capítulo 3
Não conseguia mais girar minha cabeça. Uma leve surdez me deixava na dúvida se o salão estava cheio e movimentado ou se todo aquele barulho vinha dos meus pensamentos. O teto era branco, frio e a luz me forçava o fechar dos olhos febris.
Tinha mais coisa. Não conseguia lembrar de muito. Não sei se tinha respondido tudo direito. Sentia um calor na cabeça. Um escorrer de calores, num fluxo rápido que mal me deixava sentir arrepios. O ouvido latejava, o nariz, os olhos ardiam e o coração parecia pulsar em cada fio.
Doía minha sobrancelha esquerda, mas não pensava ser grave. A sensação era de fios arrancados. Leve ardência na camada mais externa da pele, como se houvesse um ralado.
O enfermeiro saiu, tinha um ar grave, uma fraqueza nos olhos e uma voz de desesperança. Pensei que fosse comigo, que devia estar com aparência caótica. Da minha roupa só pouco da cor real aparecia.
Me fez algumas perguntas, queria saber do meu estado de consciência. Dóia pra falar, mas acho que disse tudo.
Se apresentou numa velocidade que me lembrou a Six, de Blossom. Explicou coisas que mal entendi, enfiou uma faca de luz nos olhos e pediu que move-se algumas partes. Tenho certeza que fiz tudo de modo bem débil.
Era difícil saber pra onde tinha me levado. Não sei se entrei sentado ou deitado, acho que tinha mais gente comigo.
Sentia uma fraqueza como poucas vezes havia experimentado. Uma vontade louca de desligar aquela matraca que não me deixava dormir.
Os olhos pesavam, mas alguém cismava em me sacudir.
Era estreito e corria muito. O sono amenizava a tonteira. O gosto de morte na boca do esôfago me confundia os sentidos.
Me ampararam como num abraço forte. Me conduziram como uma marionete, um degrau alto e alguns vultos estavam acomodados naquele cubículo que piscava como na festa.
Um vento soprou forte, ardeu meu rosto e parecia arrancar minha alma. Teria saído, pensei. Ainda parecia tudo muito cheio, mas o choque de temperatura me encheu de esperança.
Me empurravam de todos os lados. Lembrei de um momento parecido do rock in rio, onde sem os pés no chão, eu pulava na inércia da multidão. Me atinei a fazer movimentos curtos que acompanhassem o desespero daqueles corpos.
Caí de joelhos, queria um prumo. Saber onde estava o fora e onde estava o dentro. Meu relógio acendeu de repente. Eram 3 horas.
capítulo 4
Uma dor profunda, de contorcer os órgãos me invadiu. Teria mesmo ouvido aqueles nomes? Ouvi alguns nomes misturados aos berros do noticiário. Alguém próximo que eu não reconheci nem a voz e que não deve ter me reconhecido também, sufocava no choro desesperado os nomes de Júlio e Laura Rezende de Mello.
Chamaram-na em súplica. Voz embargada e um cheiro de me dar náuseas.
Algo gelado invadiu-me a circulação do braço, despertando o ombro e o calor de um peito em ebulição. Recobrei um pouco mais dos sentidos.
Me entubaram, espetaram agulhas, uma das mãos parecia sem pulso, mas ainda a sentia. Pediram que fechasse a mão por um segundo.
Uma voz reconfortante e doce me pediu que ficasse tranquilo para que ela realizasse seus deveres o mais rápido que conseguisse. Alguém viria em seguida.
Seguraram minha mão e perguntaram meu nome. Isso eu ainda sabia.
capítulo 5
Perdi o Júlio, a Laura e o todo o futuro que havia projetado. Metade do meu rosto era passado. Metade era um presente desfigurado.
Chorei sem lágrimas, sem forças, todo meu corpo estava vazio. Murcho.
Romantismo barato e sem sentido. Era irritante pensar que nossa última música havia sido a primeira.
Aquela que dançamos juntos, febris e jovens na pista que ainda existia em 2003.
Durante 10 anos ele dedicava o refrão pra mim. E eu respondia aquele doce So kiss me com o mesmo beijo faminto com que havia dito sim ao seu pedido de namoro.
Me trouxeram o espelho, me disseram que meus pais já voltariam, estavam conversando com o médico.
Minha mãe chorava e meu pai, com o olhar mais triste que já tinha visto evitava meus olhos.
Ouvi gritos por Maria. Era suas vozes! Gelei e tive a certeza que o pesadelo era real.
Que havíamos saído como em qualquer outro sábado, em qualquer outra cidade que conhecemos juntos em nossas viagens. Tudo isso devia ser um pesadelo. Um daqueles que me assombra quando bebo demais.
Veio a confirmação, eram mesmo aqueles. E a voz era de Dona Maria. Minha santa sogra. Tive uma vontade de gritar que eu estava ali e eles estavam comigo, que precisavam estar bem.
Queria decifrar toda e qualquer informação que trocavam. Eu amava o Júlio e Laura era minha cunhada mais linda. Precisava entender o que diziam.
capítulo final
Era vida e continua sendo, pros outros. Eu ainda sinto um gosto forte de cinza e morte.
Não me sai da cabeça a cena da minha avó dizendo: Pra morrer, basta estar vivo!
Tudo havia mudado. E como percebi mal as pequenas significâncias de qualquer outro segundo vivido.
Só consigo pensar que nada nunca mais será o mesmo. Nem a gota da marquise, nem a irritação no caixa eletrônico, a espera da fila. Nem meu rosto ou nossa música. Seu Agenor, a última ficha, o último drink, o olhar do meu pai, o abraço da minha mãe...